MS 13 - Conversão à misantropia

Desde 1986 que leio verdadeiramente o Mundo.
Ontem passei horas a ler e a ver vídeos sobre algo que desconhecia, o MS-13.
Vivendo em Portugal, tem sido a Europa Ocidental o meu pátio de leitura privilegiada. Desde os anos 80 que essa Europa vive um longo período de estagnação. Muitos países conseguiram maquilhar o aspecto económico com o recurso à dívida e o aspecto cultural com comportamentos e processos histriónicos como a publicidade agressiva a sucessos de somenos importância, jogos olímpicos por exemplo,  e a vanguarda na arte do cocó.
A crise actual vem pôr a nu, já não somente a não evolução como me parece também um retrocesso e impreparação para as dificuldades.
Em Julho de 1986 atravessei a fronteira de Vilar Formoso com a intenção de conhecer verdadeiramente a minha Europa. Com pouquíssimo dinheiro - recordo que tinha apenas 170 dólares dividido em notas de $10, uma para cada dia; como descobri rapidamente, com as comissões cambiais, seriam 17 dias de sol e fome - coloquei-me estrategicamente à boleia em Fuentes de Oñoro, diante do "Centro Comercial". Na mão uma placa de papelão que dizia em letras gordas: "SALAMANCA". Plano A, estudante em Coimbra, queria conhecer a universidade irmã.
Alfa Romeo Sprint Veloce de 1985
Não conheci Salamanca, era cedo para isso. Antes do meio-dia parou um carro desportivo, um Alfa Romeo Sprint Veloce de matrícula suíça. Às 5h30 da manhã do dia seguinte deitei-me, para descansar, debaixo de enormes cedros num parque público de Genebra. Pelo sistema de estradas da altura, estava a 2000 km de Coimbra. Nesse Verão passei uma semana a renovar os abrigos anti-nucleares de Genebra. Não gastei quase um tostão e ganhei mais $230. O pederasta argentino chefe da equipa com que trabalhei ainda me deu mais $40 do seu próprio bolso.
Bulldog Palace
Continuei o périplo com um tour por Lausane, Lucerne, Zurique e Lugano, ainda na Suíça, atravessei a Itália do norte até Trieste e daí, tranquilamente entrei a pé na Jugoslávia de Tito (morto há poucos anos), ainda unificada, optimista e esplendidamente comunista. O país fervilhava de vida mesmo se na fronteira só mostrando a minha fortuna de dólares me tivessem permitido passar. Após outra semana do outro lado do muro fiz uma longa viagem até Hamburgo, cruzando lentamente de sul a norte, a Áustria e a Alemanha. Deu tempo para visitar um amigo em Colónia, ver os dois primeiros homens a beijarem-se longamente num bar da cidade. Acelerar a 200 km/h numa auto-estrada de 4 faixas a caminho de Amsterdão; fumar uma ganza legal no Buldog Palace e surpreender-me com o tipo de mulheres que verdadeiramente entesam os homens, no Dam. Até o meu tipo lá estava.
Longos dias em Paris à cata de fantasmas no Café de Fiore e nos Deux Magots e regresso a casa com um par de dias de paragem no país basco francês, algo que se tornaria rotina nos anos seguintes. Madrid de passagem e um dia em Salamanca. Ao todo uns 10.000 km na Europa que seria a do euro.
Religiosamente, durante uma década, repeti viagens deste tipo, desde a Noruega à Grécia. Depois comecei a viajar de forma quase burguesa e perdi a ligação aos países que visitei e passou a ser impossível uma visão profunda - não cabe aqui contar as confissões espantosas que algumas pessoas fazem a um estrangeiro que levam entre duas cidades e a quem sabem nunca mais verão, recordo um homem que me passou 2 horas a dizer como ia matar a mulher e o amante se os surpreendesse ao chegar a casa;  era meia noite e regressava à sua cidade, de surpresa...

Passaram 26 anos, uma geração, o que mudou?
Para começar mudei eu. Não tanto como é natural. A Jugoslávia desapareceu. Em muitos aspectos a Espanha e Portugal mudaram muito e assemelham-se hoje à França e Alemanha de então. A Itália mudou algo, a Holanda mudou pouco, Áustria, França, Alemanha Ocidental e Suíça, quase nada.
Esta Europa globalizou-se economicamente, é um facto. Mas as sociedades não mudaram de forma importante para lá da habitual "espuma dos dias" - modas e modos de consumo.
Sinto porém que houve um retrocesso preocupante. Todas as sociedades se tornaram mais incultas e as pulsões egoístas anti-solidárias esperam apenas uma oportunidade para se mostrarem em todo o seu esplendor de crueldade. Ao contrário de há 26 anos o TER é o único valor aglutinante, o SER perdeu o seu valor. De que vale hoje SER sério, SER culto, SER honesto, SER cientista, SER um Homem?
Ou pelo menos que vale isso comparado com o TER um ferrari, TER um bom trabalho na bolsa de valores, TER dinheiro, TER um cartão de crédito platina, TER um estúdio na zona chique da cidade, TER um iPhone 4, TER uma bolsa versacce e uns sapatos gucci, TER jeito para cantar, TER jeito para o futebol?
Se há área afectada por esta crise é certamente  a do TER. 
O fenómeno MS 13 mostrou-me que uma das fragilidades destas sociedades que substituíram completamente o SER pelo TER é a vasta massa de jovens funcionalmente analfabetos - sobretudo rapazes - que na ausência do TER julgam a sua vida sem um sentido e se dispõem a morrer e matar para manter o status que os filhos dos detentores de capital têm. O PISA aponta para que em Portugal sejam cerca de 25% o número de rapazes de 15 anos (ver aqui) que não sabe ler apesar de estarem a concluir o ensino básico (9ºano de escolaridade) - 21% nos EUA, 46% no México e 56% no Brasil. E a pergunta óbvia é: O que andaram estes rapazes a fazer na escola, durante estes 9 anos?
Enquanto o estado é forte e a sociedade generosa - penso aqui na educação grátis e de qualidade, assistência médica pública generalizada, e apoios sociais às "colectividades" e aos mais pobres - fenómenos como o Mara Salvatrucha são facilmente contidos em bolsas de exclusão social onde os afectados são quase exclusivamente os trabalhadores pobres que têm de viver nesses "bairros" de exclusão social de facto. Pergunto é o que acontecerá quando o estado estiver descredibilizado - pelo mau uso que faz dos nossos impostos - e a sociedade deixar de ser generosa como parece inevitável neste momento em que se corta despesas sociais a torto e a direito e parecemos condenados a passar 30 anos a pagar as dívidas que contraímos?
O nosso MS 13 espera-nos ao virar da esquina desta brutal crise económica mas também crise de cultura e inteligência.  



Vejam os exames de 1966 e de 2012

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