Vinhas doidas

Videira (cepa)
As plantas têm uma alma simples, uma alma de planta (clicar em caso de dúvida!). Uma alma tropical, para sobreviver no frio das almas da Europa, tem de ficar "estranha", enlouquecer o bastante. Uma flor do sul que viaje para o Norte, uma flor vadia, em 6 meses murcha... tem de regressar ao solo do sul para reverdescer ou morre por dentro.
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Vou contar um pouco da história de uma planta enviada pelos Deuses, a videira. Uma viajante para o sul. Uma viajante que enlouqueceu.
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A videira é uma trepadeira da Europa, é nobre, antiga, vive vidas longas, mais de 100 anos, vê os homens vir e passar;
Parreira em Óbidos - foto Rafael Teixeira de Lima
forte e estóica gosta de maus solos, gosta de uma vida difícil, é estranha e diferente das demais plantas. Ao mesmo tempo tem uma vida bonita e se for bem tratada é feliz. A usamos para enfeitar as casas como se fosse uma hera. O meu pai plantou uma em frente da porta de casa, a minha mãe encarregou-se da destruir por maldade e ciume.
Diante da casa, saudando os visitantes e dando sombra, chama-se parreira, os amigos ficam debaixo dela. As parreiras são longevas e dão uvas doces e tardias. Temos carinho pelas vinhas e pelas parreiras....
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Em Outubro as videiras pressentem o Inverno, o frio, a neve, e lentamente perdem as folhas e adormecem, gostam até de ser cortadas, carinhosamente decepadas : "podadas".
Com a Primavera adiantada renascem para a vida, depois 6 meses de sono, ansiosas, brutais, dionisíacas (como devem ser sempre as almas nas suas Primaveras!).
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O meu pai contou-me a explicação para o longo canto nocturno do rouxinol. Um conto popular que fala da brutalidade da vida na videira.
 
O canto do rouxinol

Certa noite quente de Maio, passou Nossa Senhora por um caminho estreito, ao lado de uma vinha. Estava luar, tudo era sereno e quieto; mas de repente a Virgem Maria ouviu perto dela piar um passarinho, em queixa triste e cheia de aflição.
Tomada de Pena, Nossa Senhora correu para o passarinho aflito e viu um rouxinol preso pela gavinha duma videira.
Tendo desenleado carinhosamente as patas da avezinha, a Virgem recomendou-lhe que não se deixasse adormecer assim, enquanto crescessem os braços da videira.
Ficou muito contente o rouxinol liberto, por já poder voar. E, desde então, canta sempre de noite, para não adormecer, e diz, agradecido, em seus trinados, estes lindos versos:
Nossa Senhora disse… disse… disse…
Que, enquanto o gavião da videira subisse, que não dormisse, que não dormisse… que não dormisse…
Quando ouvirdes cantar o rouxinol, vede se ele não parece repetir ainda:
Nossa Senhora disse… disse… disse…

Velhinhos assando castanhas para o magusto
Depois dessa explosão vital a cepa dá as uvas, amadurecem até Agosto,  em Setembro são colhidas, pelo São Martinho provamos o vinho novo  com castanhas assadas, fazemos um magusto e cantamos as nossas vinhas.
Em Outubro a videira volta a adormecer, um ciclo mágico, perfeito de 365 dias... ela sabe quando é tempo de dormir, acordar, amar, frutificar e  adormecer. Talvez até saiba quando é preciso morrer. Tem uma alma sã e sábia, como poucos homens têm.

Um dia uma videira foi levada para o Brasil, para Petrolina,  lá não há Inverno nem Primavera nem Verão nem Outono; como é uma planta forte sobreviveu à provação dos trópicos mas pagou o mais alto dos preços: a cepa enlouqueceu.

"Videiras em Petrolina não adormecem
uvas e mais uvas, sem cessar...
cepas doidas, cepas desamadas
sem poetas que as saibam cantar".

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